Se você, como muita gente boa, ainda não entendeu as malícias por trás
da retórica e do projeto de Renan Calheiros de suposto abuso de
autoridade, bem como da deturpação das 10 medidas anticorrupção pela
Câmara dos Deputados, este blog resume, em formato mais didático, os artigos que detalham e reforçam o que aqui foi dito nas últimas
semanas.
Dois
pesos, duas medidas: o que é verdade e o que é mentira sobre a
responsabilização criminal de juízes, procuradores e promotores
procuradora-geral do
Ministério Público de Contas do Distrito Federal
(MPC/DF), Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira, analisa os riscos da
emenda que propõe a responsabilização criminal de juízes, procuradores e
promotores - no âmbito do PL 4.850/2016 - e alerta para a
desconfiguração da proposta original do projeto de combate à corrupção.
Confira.
Dois pesos, duas medidas: o que é verdade e o que é mentira sobre a responsabilização
criminal de juízes, procuradores e promotores
Diante do clamor popular
imediato, ontem, após a votação açodada, madrugada a dentro, pela Câmara
dos Deputados, que desvirtuou totalmente o projeto das Dez Medidas de
Combate à Corrupção, vários deputados apressaram-se para se justificar
perante o eleitor. Eles tentam passar a ideia de que a responsabilidade
criminal de juízes, procuradores e promotores é uma boa medida, pois
somente atingirá aqueles que cometerem crimes e abusos, em idêntica
situação de todos os demais agentes públicos e cidadãos, em geral, no
país. Mas será isso mesmo verdade? A resposta é negativa.
A emenda por eles aprovada, de
iniciativa do deputado Weverton Rocha (PDT/MA), criou dois dispositivos
para dizer que magistrados e membros do Ministério Público cometerão
crime quando forem patentemente desidiosos; procederem de modo
incompatível com a honra, dignidade e decoro do cargo e quando se
expressarem sobre processo pendente de julgamento ou de atuação.
A subjetividade do texto é uma
demonstração clara de que ele é aberto, de propósito, para tentar
enquadrar a atitude do juiz ou do promotor ao gosto do freguês. O texto,
sob encomenda, que não traz nenhum parâmetro objetivo de conduta, só
vai servir para tentar intimidar juízes e promotores, que passarão a
responder a inúmeras ações, toda a vez que desagradarem, principalmente,
a algum poderoso corrupto, que, por lesar o dinheiro público, é rico e
tem condições de pagar advogados que se prestem para essa função.
O projeto impede, ainda, que informações técnicas cheguem ao cidadão, calando juízes e promotores.
Sem meias palavras ou contorcionismos
interpretativos, foi isso o que aprovaram esses deputados. Mas não para
por aí. Vê-se que essas hipóteses, que os deputados querem que se
constituam em crimes, não estão previstas para criminalizar a conduta de
outros agentes públicos e nem a conduta deles mesmos. Dito por outro
modo, não é verdade afirmar que o projeto iguala magistrados e membros
do Ministério Público a todos os servidores, cidadãos e aos
parlamentares do Congresso Nacional, para a aplicação da lei penal.
Prova disso é o fato de os deputados
não haverem incluído no projeto um dispositivo semelhante, para
considerar crime e abuso de autoridade, atos praticados por
parlamentares, no exercício da atividade fim, como a aprovação de
projetos de lei e de emendas, por exemplo, inconstitucionais, lesivos ao
interesse público ou à moralidade, hipóteses que também poderiam ser
enquadradas em conduta patentemente desidiosa, indigna e ofensiva ao
decoro, à honra e à dignidade do cargo.
De outro lado, os deputados não
aproveitaram para, na mesma norma, criar um órgão externo que os submeta
à responsabilização, com a participação de outros integrantes, como
representantes da sociedade, pois, atualmente, são eles mesmos que
julgam a si próprios, por meio das conhecidas Comissões de Ética.
Diversamente, juízes e promotores, além de estarem submetidos à
legislação penal e de improbidade, estão vinculados aos Conselhos
Nacional de Magistratura e do Ministério Público, órgãos criados
justamente para punir maus agentes públicos dessa categoria, que
atentarem contra as leis, e que se compõem de representantes de outras
entidades. Em tese, isso garante a isenção das decisões adotadas.
Ainda, os mesmos deputados não foram
ágeis para aprovar, no mesmo ato, qualquer iniciativa visando a alterar a
Constituição Federal para acabar de vez com a imunidade que possuem por
suas opiniões, palavras e votos – dispositivo que não encontra
parâmetro em relação às demais categorias dos agentes públicos, em
geral.
Por tudo isso, o que fez o projeto foi
desigualar, no campo penal, juízes e membros do MP das demais
categorias de agentes públicos e políticos, deixando, em contrapartida, a
salvo dessas mesmas responsabilidades, os parlamentares do Congresso
Nacional.
Parece óbvio, também, que, se aprovado
o projeto, abre-se a possibilidade de, a qualquer tempo, semelhantes
medidas serem objeto de novas leis, destinadas a todos os demais
servidores e agentes públicos, em geral, como Delegados, Defensores,
Advogados Públicos, etc.
A nação, agora, aguarda uma resposta do Senado Federal, que só pode ser uma de duas:
Se o projeto é justo, por que parlamentares não estão nele incluídos?
Se o projeto é injusto, podem
deputados utilizar o cargo, para perseguir magistrados e membros do
Ministério Público, tentando, ainda, salvar a própria pele, ao buscar
incidir a lei a ser aprovada, imediatamente, nas operações em curso?
Que essa resposta seja breve, sincera e respeitosa para com a dignidade e a inteligência do povo brasileiro.
Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira
Procuradora-Geral do Ministério Público de Contas do Distrito Federal (MPC/DF)